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Sábado na hora do almoço fui lá conferir o concerto do quarteto de flautas Quinta Essentia. E estava certo o palpite que dei aqui - realmente o concerto foi muito interessante.
Antes de falar do grupo, é preciso falar um pouco desse instrumento. A flauta doce é, provavelmente, mais conhecida no Brasil como um instrumento usado como opção de iniciação musical. É muito comum algum pai querer colocar o filho numa escola de música para estudar, por exemplo, piano, e receber de alguém a recomendação de que o filho comece pela flauta doce. Assim, o instrumento ficou um pouco estigmatizado. É visto como instrumento limitado, de poucos recursos e voltado para o uso em aulas para crianças, quase como um brinquedo.
Mas a flauta doce é muito mais do que isso. É sim uma ótima opção de iniciação musical mas, como aconteceu comigo, muitos que começam na flauta perdem o interesse e passam para outro instrumento supostamente com mais recursos - no meu caso o violão. Acontece que a flauta doce foi um dos principais instrumentos musicais da Idade Média a fins do século XVIII. Quando a cultura e a música passaram a submeter-se aos ditames da modernidade capitalista ocidental, os instrumentos que destinavam-se à riqueza da fruição privativa da música foram abandonados por aqueles mais adequados às grandes salas de concerto. O piano tornou-se o instrumento doméstico por excelência, capaz de solar ou acompanhar a voz e a dança - além de ser um belo móvel de sala (acaba sendo este o principal uso que lhe destinam as famílias que possuem um exemplar).
A recuperação da flauta doce no século XX foi, talvez, em parte devido às novas preocupações com a educação musical das crianças e em parte devido ao movimento pela recuperação da música antiga - aquela dos tempos pré-capitalistas na qual a flauta doce teve importância capital.
Mas acontece que a flauta doce não é apenas um instrumento, mas uma família deles. A soprano é a que mais conhecemos. Costuma ser a mais aguda em um conjunto, que pode incluir também a contralto, a tenor, a baixo, a grande-baixo e a sub-baixo (citando em ordem do agudo para o grave).
Conto tudo isso porque o quarteto Quinta Essentia, que executou o concerto de sábado, tem um compromisso profundo com toda esta história. É mais do que um grupo musical - é parte de um movimento em prol da flauta doce e da divulgação do potencial deste instrumento. Isto pode ser percebido na excelente página que o grupo tem na internet. Lá tem explicações sobre o grupo, os instrumentos, o repertório, além de muitos links úteis para quem quiser saber mais sobre flauta doce. E, é claro, divulgação do CD que o grupo gravou e para o qual o concerto também serviu como evento de lançamento.
E o movimento em prol da flauta doce inclui basicamente de dois tipos de iniciativa em relação ao repertório: primeiro, descobrir, recuperar ou transcrever música antiga; segundo, incentivar a produção contemporânea pois é isso que faz o instrumento vivo.
Neste sentido, o repertório do concerto teve relação com as duas iniciativas. Da música antiga o grupo executou uma Sonata composta por Boismortier em 1731, uma Chaconne de Purcell (século XVII) e canzoni italianas da virada dos séculos XVI e XVII (Tarquinio Merula e Adriano Banchieri). Não sei informar com precisão se essa primeira parte do repertório do concerto consistiu de peças "originais" ou "transcrições". Na verdade pouco importa, pois trata-se de uma época em que a música era feita para ser executada a gosto - podendo ser um órgão ou um grupo vocal ou um grupo instrumental. Era pouco comum a prática de discriminar o instrumento responsável pela execução e até mesmo a música que certamente era vocal (por possuir texto) era muitas vezes executada com qualquer instrumento capaz de substituir as vozes - a não ser para a música litúrgica que continuava sendo sempre vocal.
O grupo executou ainda duas peças que seguramente são transcrições: Mein junges Leben hat ein End é uma peça para órgão de Sweelinck (1562-1621), talvez o mais importante compositor holandês, ativo no exato momento das lutas de independência do país; Immutemur Habitu um moteto de semana santa para coro à cappela composto no Brasil por José Maurício Nunes Garcia. Ambas as peças soaram perfeitamente no conjunto de flautas, visto que a qualidade sonora das flautas permite emular com grande riqueza o órgão e o conjunto vocal. Afinal tratam-se de instrumentos que produzem som da mesma forma, através da vibração de uma coluna ar.
E finalmente o concerto teve o repertório contemporâneo. Um arranjo magistral do Um a zero de Pixinguinha, feito por Hélcio Müller. Uma peça jazzística de Paul Leenhouts (que não descobri se é original ou arranjo) e duas composições feitas especialmente para o grupo: Sonho Novo de Julio Bellodi e Descascando Uva de Cláudio Menandro. O bis foi um sensacional e surpreendente arranjo da trilha da Pantera Cor-de-Rosa.
O concerto todo foi uma maravilhosa sensação auditiva. A intimidade da Capela Santa Maria parece perfeita para a sonoridade do quarteto de flautas. O repertório escolhido demonstrou com maestria a riqueza de possibilidades sonoras deste tipo de conjunto. E nos faz lamentar o quanto a música do classicismo/romantismo nos fez perder em poesia sonora com a homogeneização de timbres patrocinada pelo sistema temperado e seus asseclas piano e família dos violinos.
O único comentário negativo que eu faria é para a peça de Bellodi. Me parece que o compositor está acostumado a trabalhar com outros tipos de formação instrumental e teve dificuldade em explorar as características da flauta. A rítmica derivada do samba soou pesada e ineficiente, bem como o tipo de harmonia normalmente usada para escrita em naipes de big-band. Ficou mais claro isso quando se ouviu na seqüência a peça de Cláudio Menandro, que parece ter todo o métier necessário para escrever para flauta. Menandro é gambista, com grande conhecimento de música antiga. E também cavaquinista e violonista com grande habilidade na tradição do choro. Foi nessa tradição, que tem muito a ver com as origens antigas da flauta, que Menandro buscou a escrita instrumental e harmônica que funcionou tão perfeitamente bem para o quarteto de flautas.
Para quem não viu o concerto, resta o consolo de comprar o CD. É ótimo, muito bem gravado, mas não chega nem perto da experiência de ver o grupo ao vivo. Afinal, um instrumento como a flauta, que tem na riqueza de possibilidades tímbricas sua principal qualidade, fica imensamente prejudicado quando ouvido através de alto-falantes.
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terça-feira, 13 de janeiro de 2009
sexta-feira, 9 de janeiro de 2009
Terra Sonora na Oficina de Música
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Bons apreciadores deliciam-se em experimentar sabores oriundos de diversas regiões do mundo. Assim é que temos hoje uma grande diversidade de restaurantes especializados em gastronomia japonesa, chinesa, italiana, indiana, coreana, espanhola, americana, libanesa. Não há nada mais chique. E quem não se presta a experiências gustativas merece a pecha de "enjoado".
Mas e os sons?
Traçando um paralelo com a gastronomia, onde há o glamour da "cozinha internacional", existe uma febre também da world music ou música étnica. Neste selo do mercado fonográfico incluem-se os grupos musicais não tão ligados à tradição européia - cujos sons se fundam numa cultura musical tradicional, de raízes não ocidentais.
Curitiba tem, há 15 anos, um grupo musical especialmente dedicado à pesquisa deste universo sonoro que escapa à tradição da modernidade européia. É o grupo Terra Sonora, que fez seu concerto ontem à noite como parte da programação da Oficina de Música de Curitiba.
Dirigido por Liane Guariente e Plínio Silva, o grupo se dedica à pesquisa de repertório musical de várias regiões do mundo. Aliás, dizer que pesquisam repertório é pouco. Pode dar a entender que a pesquisa se resume a colher composições musicais para execução. Não é apenas isso. A pesquisa envolve instrumentos musicais e técnicas de execução. E envolve as especificidades da pronúncia da língua e do tipo de emissão vocal característica do canto em cada região escolhida.
Assim, o grupo nos proporcionou ontem uma viagem musical muito peculiar. Polônia e Sri Lanka. Chile e Moldávia. Brasil e Macedônia. Posso estar equivocado em alguma coisa porque não consegui pegar o programa - fui com duas crianças ao concerto, cheguei em cima da hora, peguei fila na bilheteria (que não permitia compra de ingresso antecipada). Mas acho que tudo bem, porque eles mudaram bastante o programa, como já é tradição. O que importa é dizer que o concerto seguiu a lógica de executar sempre sequencias (será que é assim que se escreve agora?) de duas músicas de regiões distintas. O par inusitado permitiu observar semelhanças incríveis.
Aliás, o grande interesse que o trabalho do grupo desperta vem dessa possibilidade de conhecer o mundo. Não é um conhecer turístico, aquela coisa de viajar com pacote e guia, hospedar-se em resort e passear em shopping, além de comer fast food. É um conhecer mais profundo. As ligações íntimas e inusitadas entre os modalismos de muitas regiões do mundo. O pensamento, o sentimento e a cultura pré-capitalistas que unem todos os povos num extrato submerso de tradição oral - condenada ao desaparecimento pelo mercado.
Instrumentos modernos como flauta, violão e violino, conjugam-se à instrumentos esquecidos há séculos, como o cromorne. Instrumentos ocidentais misturam-se aos de outras procedências. Essas combinações nos mostram a possibilidade de convivência. Está um outro sentido para o termo "buscar novas harmonias". Tecnicamente, significa a pesquisa de acordes, bem como de combinações e relações entre eles. Num sentido mais amplo, mais etimológico, as harmonias envolvem combinações de timbres, de mundos sonoros, de jeitos de tocar e cantar - bem como de conceber música.
Bem, não adianta eu ficar falando muito aqui. Você tem que ouvir os discos do grupo ou assistir um concerto para entender melhor do que se trata.
O Plínio e a Liane são meus colegas de departamento na FAP. E lá fazem um trabalho fantástico com os alunos em grupos como o Baiaka e o Omundô. Aliás, a formação do Terra Sonora ontem foi diferente da que está no sítio do grupo. Inclui hoje alguns ex-alunos do Plínio e da Liane na FAP, como o Gustavo Proença, o Tiago Portela, a Carla Zago. Destaque para Daniel Farah, um cantor especialíssimo, capaz de absorver os ensino da Liane a ponto de conseguir reproduzir o canto bi-fônico da Moldávia. A própria Liane não o faz por ser algo possível apenas ao aparelho vocal masculino.
Outra coisa que está diferente no sítio do grupo é que já são 4 CD's gravados. Aliás, o Plínio contou no concerto que já há um quinto em projeto, como parte do Projeto Pixinguinha da FUNARTE, para o qual o grupo foi selecionado. O projeto incluirá o novo CD e uma turnê do grupo pelo estado do Paraná.
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Bons apreciadores deliciam-se em experimentar sabores oriundos de diversas regiões do mundo. Assim é que temos hoje uma grande diversidade de restaurantes especializados em gastronomia japonesa, chinesa, italiana, indiana, coreana, espanhola, americana, libanesa. Não há nada mais chique. E quem não se presta a experiências gustativas merece a pecha de "enjoado".
Mas e os sons?
Traçando um paralelo com a gastronomia, onde há o glamour da "cozinha internacional", existe uma febre também da world music ou música étnica. Neste selo do mercado fonográfico incluem-se os grupos musicais não tão ligados à tradição européia - cujos sons se fundam numa cultura musical tradicional, de raízes não ocidentais.
Curitiba tem, há 15 anos, um grupo musical especialmente dedicado à pesquisa deste universo sonoro que escapa à tradição da modernidade européia. É o grupo Terra Sonora, que fez seu concerto ontem à noite como parte da programação da Oficina de Música de Curitiba.
Dirigido por Liane Guariente e Plínio Silva, o grupo se dedica à pesquisa de repertório musical de várias regiões do mundo. Aliás, dizer que pesquisam repertório é pouco. Pode dar a entender que a pesquisa se resume a colher composições musicais para execução. Não é apenas isso. A pesquisa envolve instrumentos musicais e técnicas de execução. E envolve as especificidades da pronúncia da língua e do tipo de emissão vocal característica do canto em cada região escolhida.
Assim, o grupo nos proporcionou ontem uma viagem musical muito peculiar. Polônia e Sri Lanka. Chile e Moldávia. Brasil e Macedônia. Posso estar equivocado em alguma coisa porque não consegui pegar o programa - fui com duas crianças ao concerto, cheguei em cima da hora, peguei fila na bilheteria (que não permitia compra de ingresso antecipada). Mas acho que tudo bem, porque eles mudaram bastante o programa, como já é tradição. O que importa é dizer que o concerto seguiu a lógica de executar sempre sequencias (será que é assim que se escreve agora?) de duas músicas de regiões distintas. O par inusitado permitiu observar semelhanças incríveis.
Aliás, o grande interesse que o trabalho do grupo desperta vem dessa possibilidade de conhecer o mundo. Não é um conhecer turístico, aquela coisa de viajar com pacote e guia, hospedar-se em resort e passear em shopping, além de comer fast food. É um conhecer mais profundo. As ligações íntimas e inusitadas entre os modalismos de muitas regiões do mundo. O pensamento, o sentimento e a cultura pré-capitalistas que unem todos os povos num extrato submerso de tradição oral - condenada ao desaparecimento pelo mercado.
Instrumentos modernos como flauta, violão e violino, conjugam-se à instrumentos esquecidos há séculos, como o cromorne. Instrumentos ocidentais misturam-se aos de outras procedências. Essas combinações nos mostram a possibilidade de convivência. Está um outro sentido para o termo "buscar novas harmonias". Tecnicamente, significa a pesquisa de acordes, bem como de combinações e relações entre eles. Num sentido mais amplo, mais etimológico, as harmonias envolvem combinações de timbres, de mundos sonoros, de jeitos de tocar e cantar - bem como de conceber música.
Bem, não adianta eu ficar falando muito aqui. Você tem que ouvir os discos do grupo ou assistir um concerto para entender melhor do que se trata.
O Plínio e a Liane são meus colegas de departamento na FAP. E lá fazem um trabalho fantástico com os alunos em grupos como o Baiaka e o Omundô. Aliás, a formação do Terra Sonora ontem foi diferente da que está no sítio do grupo. Inclui hoje alguns ex-alunos do Plínio e da Liane na FAP, como o Gustavo Proença, o Tiago Portela, a Carla Zago. Destaque para Daniel Farah, um cantor especialíssimo, capaz de absorver os ensino da Liane a ponto de conseguir reproduzir o canto bi-fônico da Moldávia. A própria Liane não o faz por ser algo possível apenas ao aparelho vocal masculino.
Outra coisa que está diferente no sítio do grupo é que já são 4 CD's gravados. Aliás, o Plínio contou no concerto que já há um quinto em projeto, como parte do Projeto Pixinguinha da FUNARTE, para o qual o grupo foi selecionado. O projeto incluirá o novo CD e uma turnê do grupo pelo estado do Paraná.
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sexta-feira, 6 de junho de 2008
Música e espiritualidade na semana Champgnat
O Colégio Marista Paranaense promoveu ontem mais um concerto da série Música e espiritualidade em sua capela. Desta vez o concerto coincidiu com a semana em que os maristas homenageiam Marcelino Champagnat, o fundador da irmandade que tem como marca sua atuação na educação baseada em valores cristãos.
Os concertos vêm sendo organizados pela pastoral, com patrocínio da APM e direção musical de Fabrício Mattos, ex-aluno do colégio. O programa da noite de ontem foi selecionado para conter obras de compositores que tiveram temporadas parisienses contemporâneas ao período de Marcelino Champagnat (início do século XIX).
A capela do marista é um lugar muito belo e inspirativo, do tipo que faz um protestante (do ramo calvinista) como eu ter raiva de sua própria tradição religiosa. Nosso iconoclasmo nos faz perder toda a beleza da devoção contida nas pinturas e imagens. As paredes da capela são lisas, mas pintadas com um técnica tal que nos sugere volume. Fiquei o tempo todo pensando em ir lá passar a mão para ver se as paredes são lisas mesmo, e se o volume é apenas sensação visual provocada pela pintura.
Um representante do colégio fez um pequeno discurso associando a prática de estarmos ali, assistindo a uma apresentação musical e a devoção a Deus e ao próximo. Ressaltou os valores maristas e cristãos e lembrou o quanto a música pode ser uma foram de sairmos da nossa rotina ditada pelo relógio "parando de correr contra o tempo e deixando que ele corra a nosso favor".
A música que foi executada, se prestou exatamente a esta espiritualidade, e aos valores maristas que ressaltam a singeleza e a dedicação ao próximo. Obras de Ferrer, Burgmüller e Carulli - compositores que não costumam ser colocados no pedestal da fama e da glória da música clássica, mas que foram importantes manifestações musicais do início do século XIX.
O primeiro foi o compositor de uma obra solo para Terzguitar, instrumento antigo, que Fabrício Matos executou com perfeição numa réplica construída pelo luthier Leandro Mombach. Trata-se de um violão de menores proporções, afinado terça acima do violão moderno, o que lhe permite transitar melhor por certas tonalidades, como a de sol maior na qual foi executada a peça. O timbre artesanal do instrumento, e a construção harmônica singela da obra fizeram o casamento perfeito com o ambiente da capela e a ocasião da homenagem a Champagnat.
De Burgmüller foi executado um duo com cello e violão, e de Carulli outro com flauta e violão. Além destes compositores, variações de Beethoven para cello e piano executadas sem a parte do piano - o que proporcionou um ambiente de maior inspiração. O piano, instrumento mor do racionalismo iluminista e da organização capitalista não casaria bem com o ambiente de devoção da noite e, ao transformar o duo num solo de violoncello, as variações de Beethoven transformam-se numa prece singela.
para fechar o programa, duas transcrições: uma peça pianística de Debussy e a Cantilena que é o primeiro movimento das Bachianas nº 5 de Villa-Lobos. (Peço desculpas pelas imprecisões nos títulos das obras, mas não havia programa impresso.) As duas transcrições para trio de flauta, violoncelo e violão, soaram perfeitas. Eu diria que a própria peça original de Debussy soaria como se fosse uma transcrição, após a perfeição tímbrica que foi a versão executada ontem.
O mesmo eu diria para a peça de Villa-Lobos. Sua versão original é para voz e octeto de violoncelos. Por absoluta incompetência prosódica do compositor (e também por incompetência enunciativa da maioria absoluta dos cantores) o texto da versão original é sempre incompreensível. De modo que a versão para flauta captou a alma melódica e descartou um texto já em si descartável. A linha de baixos foi preservada na parte transcrita para o violoncelo (instrumento que Villa-Lobos tocava profissionalmente) e o "recheio" harmônico foi adaptado para o violão (instrumento que fornecia toda a imaginação harmônica de Villa-Lobos).
A direção musical não poderia ser melhor. Fabrício Mattos é um violonista que sabe música, o que é uma coisa rara. Ele escolheu bem o repertório, fez as transcrições de forma perfeita e convidou os músicos perfeitos para a noite. Aliás, flauta e violoncelo costumam fazer muito bem suas partes em duos ou trios. O que normalmente atrapalha é o instrumento harmônico, na maioria das vezes tocado por digitadores e não por músicos. Não foi o caso ontem. Fabrício Mattos soube tirar do violão a exata expressão musical, em absoluta sincronia com seus irmãos músicos apesar dos poucos ensaios. Aliás, um concerto como esse só precisaria de muitos ensaios se os músicos não fossem tão experientes e conhecedores da linguagem que estavam apresentando.
A flauta foi tocada por Fabrício Ribeiro, que é talvez o principal flautista em atividade hoje em Curitiba, apesar de ser bem jovem. Ele foi destaque em outro concerto comentado aqui no blog, fazendo a primeira flauta da Orquestra Sinfônica do Paraná, como músico convidado. O violoncelo ficou a cargo de Tomas Juksch, músico fundador da Camerata Antiqua de Curitiba, duma família de músicos - homem de grande experiência musical e extrema sensibilidade.
Não podia ter sido melhor a noite. Fica a dica para que se acompanhe a programação musical do Marista Paranaense, que está se mostrando uma grande pedida para noites de quinta-feira.
Os concertos vêm sendo organizados pela pastoral, com patrocínio da APM e direção musical de Fabrício Mattos, ex-aluno do colégio. O programa da noite de ontem foi selecionado para conter obras de compositores que tiveram temporadas parisienses contemporâneas ao período de Marcelino Champagnat (início do século XIX).
A capela do marista é um lugar muito belo e inspirativo, do tipo que faz um protestante (do ramo calvinista) como eu ter raiva de sua própria tradição religiosa. Nosso iconoclasmo nos faz perder toda a beleza da devoção contida nas pinturas e imagens. As paredes da capela são lisas, mas pintadas com um técnica tal que nos sugere volume. Fiquei o tempo todo pensando em ir lá passar a mão para ver se as paredes são lisas mesmo, e se o volume é apenas sensação visual provocada pela pintura.
Um representante do colégio fez um pequeno discurso associando a prática de estarmos ali, assistindo a uma apresentação musical e a devoção a Deus e ao próximo. Ressaltou os valores maristas e cristãos e lembrou o quanto a música pode ser uma foram de sairmos da nossa rotina ditada pelo relógio "parando de correr contra o tempo e deixando que ele corra a nosso favor".
A música que foi executada, se prestou exatamente a esta espiritualidade, e aos valores maristas que ressaltam a singeleza e a dedicação ao próximo. Obras de Ferrer, Burgmüller e Carulli - compositores que não costumam ser colocados no pedestal da fama e da glória da música clássica, mas que foram importantes manifestações musicais do início do século XIX.
O primeiro foi o compositor de uma obra solo para Terzguitar, instrumento antigo, que Fabrício Matos executou com perfeição numa réplica construída pelo luthier Leandro Mombach. Trata-se de um violão de menores proporções, afinado terça acima do violão moderno, o que lhe permite transitar melhor por certas tonalidades, como a de sol maior na qual foi executada a peça. O timbre artesanal do instrumento, e a construção harmônica singela da obra fizeram o casamento perfeito com o ambiente da capela e a ocasião da homenagem a Champagnat.
De Burgmüller foi executado um duo com cello e violão, e de Carulli outro com flauta e violão. Além destes compositores, variações de Beethoven para cello e piano executadas sem a parte do piano - o que proporcionou um ambiente de maior inspiração. O piano, instrumento mor do racionalismo iluminista e da organização capitalista não casaria bem com o ambiente de devoção da noite e, ao transformar o duo num solo de violoncello, as variações de Beethoven transformam-se numa prece singela.
para fechar o programa, duas transcrições: uma peça pianística de Debussy e a Cantilena que é o primeiro movimento das Bachianas nº 5 de Villa-Lobos. (Peço desculpas pelas imprecisões nos títulos das obras, mas não havia programa impresso.) As duas transcrições para trio de flauta, violoncelo e violão, soaram perfeitas. Eu diria que a própria peça original de Debussy soaria como se fosse uma transcrição, após a perfeição tímbrica que foi a versão executada ontem.
O mesmo eu diria para a peça de Villa-Lobos. Sua versão original é para voz e octeto de violoncelos. Por absoluta incompetência prosódica do compositor (e também por incompetência enunciativa da maioria absoluta dos cantores) o texto da versão original é sempre incompreensível. De modo que a versão para flauta captou a alma melódica e descartou um texto já em si descartável. A linha de baixos foi preservada na parte transcrita para o violoncelo (instrumento que Villa-Lobos tocava profissionalmente) e o "recheio" harmônico foi adaptado para o violão (instrumento que fornecia toda a imaginação harmônica de Villa-Lobos).
A direção musical não poderia ser melhor. Fabrício Mattos é um violonista que sabe música, o que é uma coisa rara. Ele escolheu bem o repertório, fez as transcrições de forma perfeita e convidou os músicos perfeitos para a noite. Aliás, flauta e violoncelo costumam fazer muito bem suas partes em duos ou trios. O que normalmente atrapalha é o instrumento harmônico, na maioria das vezes tocado por digitadores e não por músicos. Não foi o caso ontem. Fabrício Mattos soube tirar do violão a exata expressão musical, em absoluta sincronia com seus irmãos músicos apesar dos poucos ensaios. Aliás, um concerto como esse só precisaria de muitos ensaios se os músicos não fossem tão experientes e conhecedores da linguagem que estavam apresentando.
A flauta foi tocada por Fabrício Ribeiro, que é talvez o principal flautista em atividade hoje em Curitiba, apesar de ser bem jovem. Ele foi destaque em outro concerto comentado aqui no blog, fazendo a primeira flauta da Orquestra Sinfônica do Paraná, como músico convidado. O violoncelo ficou a cargo de Tomas Juksch, músico fundador da Camerata Antiqua de Curitiba, duma família de músicos - homem de grande experiência musical e extrema sensibilidade.
Não podia ter sido melhor a noite. Fica a dica para que se acompanhe a programação musical do Marista Paranaense, que está se mostrando uma grande pedida para noites de quinta-feira.
Prateleiras:
crítica de concertos,
músicos de Curitiba
sábado, 3 de maio de 2008
Um balé de Prokofiev
Não sei a explicação, mas os compositores russos se destacam entre as obras primas da música de balé. Desde o clássico Tchaikovski, passando pelo revolucionário Stravinski, e incluindo Prokofiev.
Entre as obras que colocam este último em destaque no repertório de concerto estão o poema sinfônico Pedro e o lobo (uma fábula musical que apresenta os instrumentos da orquestra às crianças), a música do filme Alexandre Nevsky de Eisenstein (para a qual também existe uma versão de concerto) e este balé Romeu e Julieta.
Há outras obras interessantíssimas no catálogo deste compositor. Das que conheço posso mencionar ao menos a Sinfonia nº 1. Mas não há dúvida que se Prokofiev tivesse composto apenas a música de Romeu e Julieta já seria suficiente para merecer destaque no repertório das orquestras.
Neste fim de abril e começo de maio, o balé foi apresentado no Teatro Guaíra, em Curitiba, com o Balé Teatro Guaíra e a Orquestra Sinfônica do Paraná. A orquestra foi regida pelo maestro convidado Andrea di Mele. A coreografia foi dirigida por Luis Fernando Bongiovanni.
A obra é muito bem escrita. Prokofiev domina com perfeição a orquestra, expandindo a variedade instrumental em relação à orquestração tradicional, que se baseia nos instrumentos de arco. Quando se escutam obras orquestrais do século XVIII ou XIX, a parte mais substancial da música está nos violinos e nos seus companheiros de naipe – violas e violoncelos, com ligeiro reforço nos graves feito pelo contrabaixo. É o caso de obras de Vivaldi, ou Haydn, Mozart e Beethoven.
Após a Sinfonia Fantástica composta por Berlioz em 1830, a orquestra nunca mais foi a mesma. Se as cordas continuaram a ser a base da orquestra para muitos compositores, por outro lado, os sopros ganharam cada vez mais importância. É o caso do balé de Prokofiev, composto em 1935 e estreado, com algumas modificações feitas pelo compositor, em 1940. A orquestração inclui as cordas de arco tradicionais, madeiras reforçadas (flautim e duas flautas, dois clarinetes, clarone e sax tenor, dois oboés e dois fagotes), metais vitaminados (6 trompas, 4 trompetes, 3 trombones e tuba), harpa, uma participação incidental de bandolim, piano obligato (quando ele compõe o naipe de percussão da orquestra, e não aparece como solista) - cujo executante se revezava também na celesta, e percussão (não vi bem por causa do fosso, mas me pareciam 3 músicos, a usar principalmente a caixa clara, os tímpanos e o xilofone).
Prokofiev transformou os sopros em protagonistas. As melodias praticamente nunca estavam nas cordas, que foram usadas principalmente para criar um interessantíssimo colchão harmônico, acordes construídos de modo a fazer com que muitas vezes o som das cordas parecesse o de um sintetizador eletrônico. As melodias revezaram-se quase sempre entre flauta, oboé ou clarinete, com belos solos do fagote na região aguda. Participações destacadas também do sax tenor. Combinações de timbre inusitadas como um solo de flauta na região médio-aguda, acompanhada oitava abaixo pelas violas. Ou um uníssono feito entre a região grave do sax tenor e a aguda do fagote. Ou as muitas vezes em que o clarone tocava em uníssono com os contrabaixos.
Aliás, a linha de baixos teve papel preponderante em muitos momentos da música. Os contrabaixos tinham vida própria, trabalhando mais em conjunto com os sopros do que com as cordas. A disposição da orquestra organizada pelo maestro favoreceu os belos efeitos estereofônicos da obra: um coro de trompetes bem à esquerda do público. Entre eles e os violinos estavam as trompas. Trabalharam muito nesta música – alternando entre a suavidade típica das trompas e a agressividade que normalmente cabe aos trompetes. O uso da surdina nas trompas causou belo efeito. Ao lado das trompas vinham duas fileiras de madeiras, atrás das violas e bem no centro do fosso (clarinetes, sax e fagotes atrás e flautas e oboés na frente). Atrás das madeiras a percussão. Chegando ao lado direito do público harpa, celesta e piano. Mais à direita o coro dos trombones e tuba, seguidos pelos contrabaixos. Às cordas ficaram mais próximas ao maestro, como de costume, apenas os contrabaixos ficaram separados pelos trombones.
Acredito que, para as músicas que são mais fortemente baseadas no naipe das cordas, as orquestras brasileiras levam grande desvantagem sobre suas congêneres européias ou norte-americanas. Não temos tradição de formação de instrumentistas de arcos. Não temos capilaridade – são pouquíssimos praticantes destes instrumentos no Brasil, o que torna difícil montar um time de 30 ou 40 músicos de altíssimo nível. Já os sopros, além de precisarem de uma menor quantidade de músicos, o que torna mais fácil formar naipes de alto nível, contam com uma grande difusão no Brasil. Graças à tradição dos grupos de choro temos flautistas e clarinetistas em abundância. Trompetes e trombones também são bem distribuídos, devido à existência de bandas marciais na maioria dos municípios brasileiros. Assim, nossa orquestra provavelmente não deve nada em qualidade sonora a outras do hemisfério norte quando se trata de uma obra como a de Prokofiev, na qual os sopros têm papel preponderante.
Quem assistiu aos concertos (um total de oito récitas que acabam domingo, dia 4 de maio – ainda dá tempo de ver), foi brindado com a caprichada sonoridade protagonizada por músicos que desempenharam os trechos de maior destaque na obra. O saxofone de Rodrigo Capistrano, a flauta de Fabrício Ribeiro e o inesperado bandolim de Roger Burmester, músicos convidados para o concerto. E os titulares da orquestra que também brilharam – o clarone de Maurício Carneiro, os clarinetes de André Erlich e Marcelo Oliveira, o oboé de Paulo Barreto. As trompas chefiadas por Edivaldo Chiquini e os trombones por Sílvio Spolaore.
A coreografia – e disso falo sem conhecimento técnico – foi excelente. Me parece que Bogiovanni contextualizou muita coisa, colocou propostas mais contemporâneas em vários passos. Não sei se foi idéia dele, mas colocar um bailarino homem (Rodrigo Mello) no papel da ama Julieta deu ótimo efeito – além de dar o toque de humor que foi o ponto alto da coreografia. Me parece que os bailarinos que dançaram são todos do corpo do Balé Guaíra, com qualidade que só pode ser louvada por um apreciador leigo no assunto como eu.
Ao escutar esta obra musical, não pude deixar de pensar num dilema que incomodou a crítica musical no século passado. No Ocidente a vanguarda musical passou a ser erigida em símbolo de liberdade – liberdade de criar e de inovar, sem interferência política. Uma crítica direta às imposições estéticas do realismo socialista, política oficial dos regimes comunistas durante a Guerra Fria. Mas hoje, já com certo distanciamento, e sem a necessidade de se comprometer com um ou outro lado desta disputa ideológica, pode-se pensar que a liberdade estava do outro lado. Sem a ditadura da idéia de que toda a obra tem que inovar, tem que fazer “avançar” as técnicas de composição, os compositores do leste europeu (e também os de outros países periféricos como os da América Latina) atingiram a verdadeira liberdade estética: compor música por que gostam de música. E para um público que vai ouvir música por que gosta de música. E fica combinado que ninguém precisa compor música para dizer que inovou, que fez avançar a técnica; e que ninguém precisa ouvir música para fingir que entendeu alguma coisa.
Acredito que se não fosse a sensibilidade de compositores como Prokofiev, no século XX a orquestra sinfônica teria se tornado peça de museu, condenada pela irrelevância elitista e pelo hermetismo de vanguardas que têm como lema o desprezo pelo grande público.
Entre as obras que colocam este último em destaque no repertório de concerto estão o poema sinfônico Pedro e o lobo (uma fábula musical que apresenta os instrumentos da orquestra às crianças), a música do filme Alexandre Nevsky de Eisenstein (para a qual também existe uma versão de concerto) e este balé Romeu e Julieta.
Há outras obras interessantíssimas no catálogo deste compositor. Das que conheço posso mencionar ao menos a Sinfonia nº 1. Mas não há dúvida que se Prokofiev tivesse composto apenas a música de Romeu e Julieta já seria suficiente para merecer destaque no repertório das orquestras.
Neste fim de abril e começo de maio, o balé foi apresentado no Teatro Guaíra, em Curitiba, com o Balé Teatro Guaíra e a Orquestra Sinfônica do Paraná. A orquestra foi regida pelo maestro convidado Andrea di Mele. A coreografia foi dirigida por Luis Fernando Bongiovanni.
A obra é muito bem escrita. Prokofiev domina com perfeição a orquestra, expandindo a variedade instrumental em relação à orquestração tradicional, que se baseia nos instrumentos de arco. Quando se escutam obras orquestrais do século XVIII ou XIX, a parte mais substancial da música está nos violinos e nos seus companheiros de naipe – violas e violoncelos, com ligeiro reforço nos graves feito pelo contrabaixo. É o caso de obras de Vivaldi, ou Haydn, Mozart e Beethoven.
Após a Sinfonia Fantástica composta por Berlioz em 1830, a orquestra nunca mais foi a mesma. Se as cordas continuaram a ser a base da orquestra para muitos compositores, por outro lado, os sopros ganharam cada vez mais importância. É o caso do balé de Prokofiev, composto em 1935 e estreado, com algumas modificações feitas pelo compositor, em 1940. A orquestração inclui as cordas de arco tradicionais, madeiras reforçadas (flautim e duas flautas, dois clarinetes, clarone e sax tenor, dois oboés e dois fagotes), metais vitaminados (6 trompas, 4 trompetes, 3 trombones e tuba), harpa, uma participação incidental de bandolim, piano obligato (quando ele compõe o naipe de percussão da orquestra, e não aparece como solista) - cujo executante se revezava também na celesta, e percussão (não vi bem por causa do fosso, mas me pareciam 3 músicos, a usar principalmente a caixa clara, os tímpanos e o xilofone).
Prokofiev transformou os sopros em protagonistas. As melodias praticamente nunca estavam nas cordas, que foram usadas principalmente para criar um interessantíssimo colchão harmônico, acordes construídos de modo a fazer com que muitas vezes o som das cordas parecesse o de um sintetizador eletrônico. As melodias revezaram-se quase sempre entre flauta, oboé ou clarinete, com belos solos do fagote na região aguda. Participações destacadas também do sax tenor. Combinações de timbre inusitadas como um solo de flauta na região médio-aguda, acompanhada oitava abaixo pelas violas. Ou um uníssono feito entre a região grave do sax tenor e a aguda do fagote. Ou as muitas vezes em que o clarone tocava em uníssono com os contrabaixos.
Aliás, a linha de baixos teve papel preponderante em muitos momentos da música. Os contrabaixos tinham vida própria, trabalhando mais em conjunto com os sopros do que com as cordas. A disposição da orquestra organizada pelo maestro favoreceu os belos efeitos estereofônicos da obra: um coro de trompetes bem à esquerda do público. Entre eles e os violinos estavam as trompas. Trabalharam muito nesta música – alternando entre a suavidade típica das trompas e a agressividade que normalmente cabe aos trompetes. O uso da surdina nas trompas causou belo efeito. Ao lado das trompas vinham duas fileiras de madeiras, atrás das violas e bem no centro do fosso (clarinetes, sax e fagotes atrás e flautas e oboés na frente). Atrás das madeiras a percussão. Chegando ao lado direito do público harpa, celesta e piano. Mais à direita o coro dos trombones e tuba, seguidos pelos contrabaixos. Às cordas ficaram mais próximas ao maestro, como de costume, apenas os contrabaixos ficaram separados pelos trombones.
Acredito que, para as músicas que são mais fortemente baseadas no naipe das cordas, as orquestras brasileiras levam grande desvantagem sobre suas congêneres européias ou norte-americanas. Não temos tradição de formação de instrumentistas de arcos. Não temos capilaridade – são pouquíssimos praticantes destes instrumentos no Brasil, o que torna difícil montar um time de 30 ou 40 músicos de altíssimo nível. Já os sopros, além de precisarem de uma menor quantidade de músicos, o que torna mais fácil formar naipes de alto nível, contam com uma grande difusão no Brasil. Graças à tradição dos grupos de choro temos flautistas e clarinetistas em abundância. Trompetes e trombones também são bem distribuídos, devido à existência de bandas marciais na maioria dos municípios brasileiros. Assim, nossa orquestra provavelmente não deve nada em qualidade sonora a outras do hemisfério norte quando se trata de uma obra como a de Prokofiev, na qual os sopros têm papel preponderante.
Quem assistiu aos concertos (um total de oito récitas que acabam domingo, dia 4 de maio – ainda dá tempo de ver), foi brindado com a caprichada sonoridade protagonizada por músicos que desempenharam os trechos de maior destaque na obra. O saxofone de Rodrigo Capistrano, a flauta de Fabrício Ribeiro e o inesperado bandolim de Roger Burmester, músicos convidados para o concerto. E os titulares da orquestra que também brilharam – o clarone de Maurício Carneiro, os clarinetes de André Erlich e Marcelo Oliveira, o oboé de Paulo Barreto. As trompas chefiadas por Edivaldo Chiquini e os trombones por Sílvio Spolaore.
A coreografia – e disso falo sem conhecimento técnico – foi excelente. Me parece que Bogiovanni contextualizou muita coisa, colocou propostas mais contemporâneas em vários passos. Não sei se foi idéia dele, mas colocar um bailarino homem (Rodrigo Mello) no papel da ama Julieta deu ótimo efeito – além de dar o toque de humor que foi o ponto alto da coreografia. Me parece que os bailarinos que dançaram são todos do corpo do Balé Guaíra, com qualidade que só pode ser louvada por um apreciador leigo no assunto como eu.
Ao escutar esta obra musical, não pude deixar de pensar num dilema que incomodou a crítica musical no século passado. No Ocidente a vanguarda musical passou a ser erigida em símbolo de liberdade – liberdade de criar e de inovar, sem interferência política. Uma crítica direta às imposições estéticas do realismo socialista, política oficial dos regimes comunistas durante a Guerra Fria. Mas hoje, já com certo distanciamento, e sem a necessidade de se comprometer com um ou outro lado desta disputa ideológica, pode-se pensar que a liberdade estava do outro lado. Sem a ditadura da idéia de que toda a obra tem que inovar, tem que fazer “avançar” as técnicas de composição, os compositores do leste europeu (e também os de outros países periféricos como os da América Latina) atingiram a verdadeira liberdade estética: compor música por que gostam de música. E para um público que vai ouvir música por que gosta de música. E fica combinado que ninguém precisa compor música para dizer que inovou, que fez avançar a técnica; e que ninguém precisa ouvir música para fingir que entendeu alguma coisa.
Acredito que se não fosse a sensibilidade de compositores como Prokofiev, no século XX a orquestra sinfônica teria se tornado peça de museu, condenada pela irrelevância elitista e pelo hermetismo de vanguardas que têm como lema o desprezo pelo grande público.
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