sábado, 7 de junho de 2008

Uma obra-prima lirica

Após uma série de textos em que destaquei a habilidade de Carlos Gomes como compositor de danças de salão e de música sinfônica (aqui, aqui e aqui), não poderia deixar de mostrar um pouco do que foi a principal habilidade e o principal motivo de seu sucesso internacional: a incrível habilidade de criar melodias dramáticas, da qual a ária cantada pela personagem que dá nome à ópera Fosca é provavelmente o maior exemplo.

A história desta ópera se passa entre piratas da Ístria, no século X. Gajolo é o chefe, Fosca sua irmã. Cambro o sub-chefe que quer trair Gajolo e tomar seu lugar. Paolo é príncipe de Veneza que foi seqüestrado e é devolvido mediante resgate. Delia é sua noiva veneziana. Fosca está apaixonada por Paolo, foi ela que intercedeu para que não fosse morto por Gajolo. Fosca cuidou de seus ferimentos no esconderijo dos piratas. Agora não quer que Paolo seja devolvido, mas Gajolo insiste que um pirata tem que cumprir sua palavra.

Os piratas fazem um novo plano, para seqüestrar dez casais durante cerimônia de casamento na igreja. Coincidentemente, Paolo e Delia estão entre os casais. Cambro descobre isso pois andou pela cidade disfarçado de mercador. Conta-o a Fosca, que liderará o ataque à igreja. Quando ela sabe que Paolo se casará, canta a ária Quale orribile pecato:

A lei d’apresso egli era!
Eterno affetto ei le giurava!
Ed ai suoi dolci accenti con un tenero sguardo
con u sorriso risponde a costei
ch'io tanto abboro!
Per lor l'ebbrezza d'un piacer divino
per me il dolor d'un disperato amore!
Ciel! Per essi la gioja... l'ebbrezza...
Ah! E dio le inferno ho in core!

(cobre o rosto com as mãos e chora)

Quale orribile peccato espiar quaggiú
degg'io? Dunque un cor tu m'hai donato
per straziarlo, per straziarlo, o avverso.
Dio! O Dio! Un lembo arcano a me svelasti,
ah! Poi, crudel! Ah! Poi,
crudel miripiombasti,
ripiombasti nell'abisso del dolor!
Ah! Tu del cielo un lembo arcano
a miei sguardi un di svelasti,
poi, crudel, mi ripiombasti
nell'abisso del dolore, ohimé!
mi ripiombasti, mi ripiombasti
nel dolor, nell'abisso del dolor
Ohié! Ah! Crudel! Ah! Crudel!

(cai de joelhos)


tradução:

Ele junto a ela
jurava-lhe terno afeto,
e com um olhar terno
responde ocm um sorriso
à sua doce voz, o que tanto me aborrece!
Para eles, a sensação de um prazer divino;
para mim,
a dor de um amor desesperado!
Ah! E eu com o inferno no coração!

Que pecado horrível eu espio?
Portanto o coração que me deste
era para ser despedaçado, despedaçado.
Oh! Deus! Oh! Deus! Um segredo extremo a mim
revelaste, ah! Depois, cruel! Ah! Depois,
cruelmente me desmontaste,
me jogaste no abismo da dor!
Ah! Um dia revelaste aos meus olhos
um segredo extremo dos céus
Ah! Dos céus um segredo extremo
me foi revelado, depois fui cruelmente jogada
no abismo da dor, ai de mim!
Depois me desmontaste, me jogaste na dor, no abismo
da dor, ai de mim! Ah! Cruel! Ah! Cruel!


Carlos Gomes compositor sinfônico - III

Fosca, estreada em 1873, é considerada a ópera musicalmente mais desenvolvida de Carlos Gomes. Não foi muito bem recebida pelo público, o próprio compositor a considerava uma ópera para entendidos - assim como dizia que Il Guarany era para os brasileiros e Salvator Rosa (1874) para os italianos.

Esta abertura é também, provavelmente, a melhor obra orquestral de Carlos Gomes. Aqui numa interpretação de Fernando Malheiros com a Ópera Nacional de Sófia.

Carlos Gomes compositor sinfônico - II

"A música erudita brasileira, como forma de expressão capaz de refletir sobre sua própria história e criar a partir disso, começa com Il Guarany". (MAMMI, Lorenzo. Carlos Gomes. São Paulo: Publifolha, 2001. Coleção Folha Explica. p. 92)

Esta frase, dita no livro que é a interpretação mais atualizada deste compositor na cultura brasileira, dá a medida da importância que teve a composição da ópera Il Guarany para a música brasileira.

Quando Carlos Gomes partiu para Milão em 1863, já levava na bagagem as idéias para esta ópera, cuja finalização demoraria mais alguns anos até resolver questões empresariais que permitissem a um compositor oriundo da América Latina encenar uma ópera no Scala de Milão, a Meca da ópera oitocentista. A primeira ópera italiana de Gomes foi à cena em 1870. Prova de que ele já era um compositor maduro quando chegou à Itália é a existência de sua ópera A noite do castelo, já encenada no Brasil em 1861.

Outro comentarista afirma que Carlos Gomes foi, ainda mais do que grande operista, um grande compositor sinfônico. Como não houvesse no Brasil (nem na Itália) de fins do século XIX um circuito de música de concerto (público, editoras, crítica) a única opção para um compositor com vocação sinfônica como Carlos Gomes era escrever partes instrumentais bastante desenvolvidas para suas óperas. É o que afirma Marcos Pupo Nogueira em sua tese de doutorado Carlos Gomes um compositor orquestral: os prelúdios e sinfonias de suas óperas (1861-1891). (FFLCH-USP, 2003).

A seguir, a gravação da Protofonia do Guarani, certamente a música orquestral mais ouvida no Brasil - tanto em concerto como também por ter se tornado a trilha de abertura do programa radiofônico A voz do Brasil. Seguida do Bailado do 3º ato, onde representam-se danças indígenas. Mammi afirma que este bailado é a primeira experiência composicional que tenta representar o primitivismo de povos não-europeus através de efeitos orquestrais inauditos para as técnicas acadêmicas - recurso que seria muito desenvolvido no século XX por compositores como Debussy, Stravinski e Bartok. Neste bailado Carlos Gomes reaproveitou muito material composto anteriormente como danças de salão.

A gravação é com a Ópera Nacional de Sófia, regida por Fernando Malheiros. Uma interpretação muito interessante, onde se pode ouvir com mais clareza a força do naipe de sopros - que muitos interpretam como defeito na orquestração de Gomes ("influência da música de banda"), mas que pode ser interpretado como traço bastante inovador de sua música.


Carlos Gomes compositor sinfônico - I

A primeira ópera composta por Carlos Gomes foi A noite do castelo. Foi escrita para ser encenada pela Companhia de Ópera Nacional, provavelmente o maior empreendimento cultural jamais havido no Brasil.

A noite do castelo foi escrita em 1861, pouco depois do compositor chegar ao Rio de Janeiro. Ele teve, antes desta ópera, pouco mais de um ano de aulas no Conservatório Imperial, onde foi aluno de Gioachino Giannini. Depoimentos da época dão conta de que ele era um professor relapso. De qualquer forma teve importante papel como regente na Companhia de Ópera Nacional. Na mesma companhia empregou Carlos Gomes como assistente, onde realizava ensaios, transcrições, cópias de partituras, etc. Esta deve ter sido uma grande escola.

Mesmo assim, não seria possível dizer que Carlos Gomes tenha chegado "cru" ao Rio de Janeiro, pois em um ano seria impossível desenvolver a técnica necessária para compor uma abertura como a desta ópera. Ele já estava razoavelmente "pronto" quando chegou de São Paulo, assim como a composição desta ópera também demonstra que ele já estava razoavelmente "pronto" antes de ir estudar em Milão.

Eis a abertura da ópera, em gravação precária:


Carlos Gomes compositor de salão

Carlos Gomes é muito reconhecido como o grande compositor de ópera, representante do Brasil no panteão dos grandes compositores do século XIX, tendo recebido reconhecimento e fama em Milão, capital da ópera italiana.

Muitas das biografias deste compositor tentaram reforçar esta visão do herói nacional, do grande operista. Ele é tudo isso. Mas tem muito mais. Compositor de modinhas e de música de salão - danças para piano, muito próximo de outros compositores mais ou menos contemporâneos, como Ernesto Nazareth ou Henrique Alves de Mesquita.

Filho de um músico de banda, e acostumado à atuação nos bailes da sociedade de Campinas, a música popular teve papel primordial na formação musical e na consolidação do estilo composicional de Carlos Gomes. Muitas de suas peças de salão foram posteriormente re-elaboradas e aproveitadas em trechos das suas óperas.

Aqui algumas delas, em gravação um pouco erudita demais. Ficaria melhor na mão de um pianista acostumado a tocar maxixes...


sexta-feira, 6 de junho de 2008

Música e espiritualidade na semana Champgnat

O Colégio Marista Paranaense promoveu ontem mais um concerto da série Música e espiritualidade em sua capela. Desta vez o concerto coincidiu com a semana em que os maristas homenageiam Marcelino Champagnat, o fundador da irmandade que tem como marca sua atuação na educação baseada em valores cristãos.

Os concertos vêm sendo organizados pela pastoral, com patrocínio da APM e direção musical de Fabrício Mattos, ex-aluno do colégio. O programa da noite de ontem foi selecionado para conter obras de compositores que tiveram temporadas parisienses contemporâneas ao período de Marcelino Champagnat (início do século XIX).

A capela do marista é um lugar muito belo e inspirativo, do tipo que faz um protestante (do ramo calvinista) como eu ter raiva de sua própria tradição religiosa. Nosso iconoclasmo nos faz perder toda a beleza da devoção contida nas pinturas e imagens. As paredes da capela são lisas, mas pintadas com um técnica tal que nos sugere volume. Fiquei o tempo todo pensando em ir lá passar a mão para ver se as paredes são lisas mesmo, e se o volume é apenas sensação visual provocada pela pintura.

Um representante do colégio fez um pequeno discurso associando a prática de estarmos ali, assistindo a uma apresentação musical e a devoção a Deus e ao próximo. Ressaltou os valores maristas e cristãos e lembrou o quanto a música pode ser uma foram de sairmos da nossa rotina ditada pelo relógio "parando de correr contra o tempo e deixando que ele corra a nosso favor".

A música que foi executada, se prestou exatamente a esta espiritualidade, e aos valores maristas que ressaltam a singeleza e a dedicação ao próximo. Obras de Ferrer, Burgmüller e Carulli - compositores que não costumam ser colocados no pedestal da fama e da glória da música clássica, mas que foram importantes manifestações musicais do início do século XIX.

O primeiro foi o compositor de uma obra solo para Terzguitar, instrumento antigo, que Fabrício Matos executou com perfeição numa réplica construída pelo luthier Leandro Mombach. Trata-se de um violão de menores proporções, afinado terça acima do violão moderno, o que lhe permite transitar melhor por certas tonalidades, como a de sol maior na qual foi executada a peça. O timbre artesanal do instrumento, e a construção harmônica singela da obra fizeram o casamento perfeito com o ambiente da capela e a ocasião da homenagem a Champagnat.

De Burgmüller foi executado um duo com cello e violão, e de Carulli outro com flauta e violão. Além destes compositores, variações de Beethoven para cello e piano executadas sem a parte do piano - o que proporcionou um ambiente de maior inspiração. O piano, instrumento mor do racionalismo iluminista e da organização capitalista não casaria bem com o ambiente de devoção da noite e, ao transformar o duo num solo de violoncello, as variações de Beethoven transformam-se numa prece singela.

para fechar o programa, duas transcrições: uma peça pianística de Debussy e a Cantilena que é o primeiro movimento das Bachianas nº 5 de Villa-Lobos. (Peço desculpas pelas imprecisões nos títulos das obras, mas não havia programa impresso.) As duas transcrições para trio de flauta, violoncelo e violão, soaram perfeitas. Eu diria que a própria peça original de Debussy soaria como se fosse uma transcrição, após a perfeição tímbrica que foi a versão executada ontem.

O mesmo eu diria para a peça de Villa-Lobos. Sua versão original é para voz e octeto de violoncelos. Por absoluta incompetência prosódica do compositor (e também por incompetência enunciativa da maioria absoluta dos cantores) o texto da versão original é sempre incompreensível. De modo que a versão para flauta captou a alma melódica e descartou um texto já em si descartável. A linha de baixos foi preservada na parte transcrita para o violoncelo (instrumento que Villa-Lobos tocava profissionalmente) e o "recheio" harmônico foi adaptado para o violão (instrumento que fornecia toda a imaginação harmônica de Villa-Lobos).

A direção musical não poderia ser melhor. Fabrício Mattos é um violonista que sabe música, o que é uma coisa rara. Ele escolheu bem o repertório, fez as transcrições de forma perfeita e convidou os músicos perfeitos para a noite. Aliás, flauta e violoncelo costumam fazer muito bem suas partes em duos ou trios. O que normalmente atrapalha é o instrumento harmônico, na maioria das vezes tocado por digitadores e não por músicos. Não foi o caso ontem. Fabrício Mattos soube tirar do violão a exata expressão musical, em absoluta sincronia com seus irmãos músicos apesar dos poucos ensaios. Aliás, um concerto como esse só precisaria de muitos ensaios se os músicos não fossem tão experientes e conhecedores da linguagem que estavam apresentando.

A flauta foi tocada por Fabrício Ribeiro, que é talvez o principal flautista em atividade hoje em Curitiba, apesar de ser bem jovem. Ele foi destaque em outro concerto comentado aqui no blog, fazendo a primeira flauta da Orquestra Sinfônica do Paraná, como músico convidado. O violoncelo ficou a cargo de Tomas Juksch, músico fundador da Camerata Antiqua de Curitiba, duma família de músicos - homem de grande experiência musical e extrema sensibilidade.

Não podia ter sido melhor a noite. Fica a dica para que se acompanhe a programação musical do Marista Paranaense, que está se mostrando uma grande pedida para noites de quinta-feira.