sexta-feira, 28 de março de 2008

Grupo Banza

A música nos primeiros séculos da colonização portuguesa na América ainda é um grande mistério. Sabe-se algumas informações ainda muito fracionadas, e a documentação é esparsa e de difícil acesso. Em outro post escrevi sobre a música dos jesuítas, com base na pesquisa de doutorado do prof. Marcos Holler, que foi toda feita com informações secundárias, pois não sobreviveram partituras.

Sei que existe um trabalho também de reconstituição da música das festas indígenas, festas religiosas portuguesas e festas da colônia judaica no período holandês em Pernambuco. Este disco, dirigido e gravado pela pesquisadora e cantora Ana Maria Kiefer está, até onde eu sei, esgotado. Infelizmente.

Mas há ainda uma outra informação muito relevante sobre a música do período. O poeta e cronista Gregório de Matos deixou muita informação sobre a música feita nas ruas de Salvador do final do século XVII. Com base nestas informações e em partituras localizadas em arquivos portugueses, o pesquisador Rogério Budasz, professor do curso de Música da UFPR, reconstituiu a "música do tempo do Boca do Inferno", gravada em disco pelo grupo Banza, por ele dirigido.
É um trabalho pioneiro, uma grande informação histórica e também um grande trabalho artístico. Merecidamente recebeu patrocínio da Petrobras e do SESC, respectivamente, para duas trunês pelo Brasil. Também merceidamente, o disco foi lançado internacionalmente pelo selo NAXOS, após algum tempo de circulação em gravação independente.

A audição do disco nos revela este fantástico "triângulo atlântico" do qual a América Portuguesa foi um dos vértices. (Os outros dois foram a África Ocidental e a Penísula Ibérica.) Instrumentos tradicionais do barroco europeu - violas, alaúdes, machetes, flauta, violino, mesclam-se às percussões afro-brasileiras. Este som sui-generis nos faz repensar os nossos mitos de identidade nacional através da música, nos fazendo lembrar o quão cosmopolita e multi-cultural é esse nosso pedaço de chão desde o início da colonização portuguesa.

terça-feira, 25 de março de 2008

Os jesuítas e a música na América Portuguesa

Os jesuítas tiveram papel primordial na reforma católica do século XVI, bem como na expansão missionária que se fez junto com o colonialismo ibérico. Entre os índios da América os jesuítas desenvolveram intensa atividade musical. A que aconteceu nas missões do Paraguai e da Bolívia já é mais conhecido, inclusive com a presença de compositores de renome como Domenico Zipoli.

Mas a atuação na América Portuguesa é ainda uma grande incógnita. Que começa a ser desvendada na tese de doutoramento de Marcos Holler:

HOLLER, Marcos Tadeu. Uma história de cantares de Sion na terra dos brasis: a música na atuação dos jesuítas na América Portuguesa (1549-1759). Tese de doutorado, Campinas, IA-UNICAMP, 2006.

Holler é professor do departamento de música da UDESC, em Florianópolis. Acredito que este está se tornando um dos grandes departamentos de música do Brasil, com a presença de outros grandes professores/pesquisadores como Acácio Piedade (etnomusicologia) e Sérgio Freitas (harmonia) – para citar apenas os nomes que me vêm de imediato à cabeça.

A tese está disponível em arquivo eletrônico aqui , na biblioteca digital de teses e dissertações da UNICAMP.

Aqui no Melomano faço uma resenha em três partes:

Os jesuítas e a música na América Portuguesa - I

Os jesuítas e a música na América Portuguesa - II

Os jesuítas e a música na América Portuguesa - III

Os jesuítas e a música na América Portuguesa - I

A tese é um calhamaço de 950 páginas, das quais 700 páginas compõem um segundo volume de documentos transcritos, o que é um grande serviço a outros pesquisadores que podem consultar o material sem precisar deslocar-se até os arquivos. Aliás, o deslocamento aos arquivos foi uma atividade que deve ter sido penosa a Holler, pois foram consultados documentos originais em arquivos de Portugal, Roma, Vaticano, São Paulo e Rio de Janeiro, além de coligidas informações em milhares de páginas de documentos já publicados.

Holler faz um levantamento exaustivo de fontes, tentando suprir uma quase completa ausência de trabalhos que tratem da música feita durante o trabalho missionário dos Inacianos. Em sua banca estiveram dois grandes especialistas em música da América Portuguesa: Paula Castanha (UNESP) e Rogério Budasz (UFPR).

As limitações do trabalho estão na ótica musical que lhe dada. Explico-me. O autor não tem traquejo de historiador. A tarefa hercúlea de coligir documentos é altamente louvável, ainda mais que ele os coloca à disposição do leitor. Mas o tratamento dado aos documentos fica aquém do possível, até do desejável, eu diria. Mas isto seria cobrar do autor algo que estaria além da sua proposta e acima do seu preparo. Fica então a recomendação para historiadores de formação se debruçarem sobre o tema, trazendo as contribuições pertinentes.

Os jesuítas e a música na América Portuguesa - II

O trabalho começa com uma história da Companhia de Jesus e de sua atuação nas terras portuguesas da América. Obviamente, esta parte do trabalho é de segunda mão – uma síntese de outras obras que já tratam do tema. Falta o traquejo de historiador para tratar, por exemplo, do tema das discussões religiosas e do contexto intelectual no qual os jesuítas surgiram no século XVI. Falta também um alcance mais amplo na explicação da expulsão dos jesuítas como parte da política pombalina.

A maior parte do texto é de listagem, relato, transcrição e citação de documentos. Há uma seção em que o autor relata todos os colégios e igrejas fundados pelos jesuítas nas terras portuguesas (ficam excluídas as regiões missioneiras que hoje pertencem ao Rio Grande do Sul, mas que na época eram terras espanholas) – a faixa litorânea que vai do Pará a Santa Catarina. Há também outra seção em que o autor discorre sobre todos os instrumentos musicais mencionados nos documentos, sejam cartas ou relatórios produzidos pelos padres ou sejam os inventários civis feitos após a expulsão dos jesuítas das terras portuguesas.

Há ainda uma seção em que o autor comenta as disposições sobre o uso da música nos vários regulamentos da Companhia de Jesus na Europa. Aqui, é curioso descobrir que Loyola proibia seus religiosos de fazerem música, para que não perdessem o tempo que deveriam dedicar à atividade missionária e à assistência. Os grupos jesuítas europeus que mantiveram o uso da música o fizeram à revelia de determinações superiores, o que ocorreu principalmente em terras alemãs. Talvez pelo prestígio que lá tiveram os hinos luteranos, aqueles missionários católicos não poderiam deixar de oferecer também sua própria forma de música.

Mas a parte do trabalho que é realmente mais interessante é o trecho em que o autor analisa o uso que os jesuítas fizeram da música em suas atividades na América Portuguesa. Este é verdadeiramente o objeto do trabalho, apesar de aparecer um pouco tarde. Esta é a parte final do trabalho, e está nas páginas 149 a 205.

Holler então demonstra como:

A prática musical é permitida como uma ferramenta de conversão do gentio; nos estabelecimentos urbanos, pode ser utilizada em eventos sacros, desde que seja restrita a determinadas ocasiões, e que não seja realizada pelos padres, para que estes possam ocupar-se do cuidado com o bem espiritual. (p. 149)

O autor sugere que o uso da música pelos jesuítas tenha sido uma conseqüência natural da atração que os índios sentiam por ela. O ensino de música aos índios tornou-se uma das estratégias. O mais comum era os padres “adotarem” meninos índios, assim como já faziam com órfãos vindos de Portugal, ensinando-lhes música, entre outras coisas. A formação de índios músicos também ajudava a fazer contato com tribos hostis, pois eles eram levados como espécie de embaixadores dos padres.

Holler demonstra que os jesuítas perceberam que era muito mais efetivo usar a cultura indígena para a catequização, por isso eles empregavam os instrumentos musicais e as melodias indígenas para cantar os cantos sacros católicos.

O regulamento dos jesuítas proibia os monges de dedicarem-se à atividade musical, para não lhes tomar o tempo que deveria ser dedicado às atividades estritamente religiosas. Por causa disso, eles passaram a ensinar música aos índios para que estes assumissem a função de músicos durante a liturgia nos aldeamentos. Já nas regiões urbanas, as restrições à participação dos jesuítas nas atividades musicais eram seguidas mais estritamente. Por isso, segundo Holler, a documentação menciona sempre música feita por elementos externos nos eventos musicais dos colégios jesuítas – geralmente beneditinos ou carmelitas, ou até músicos profissionais contratados. Pelas mesmas razões o ensino de música nos colégios e seminários jesuíticos era feito por pessoas externas à ordem.

Os jesuítas e a música na América Portuguesa - III

O panorama da música feita em paralelo às atividades missionárias jesuíticas na América Portuguesa é muito difícil, especialmente por não existirem documentos musicais – não sobreviveram partituras do período. É por isso que Holler só pode conjecturar a partir de informações secundárias – os instrumentos utilizados, as ocasiões e o tipo de música que era feita.

Tentando fazer uma síntese das informações trazidas pelo autor, podemos dizer que os instrumentos utilizados eram principalmente flautas, charamelas (instrumentos de sopro de madeira ou metal em famílias de várias vozes, incluindo oboé e sacabuxa), gaitas (de foles), violas (parentes do violão moderno), e órgão. Em geral os instrumentos eram usados para dar sustento harmônico às vozes cantadas. Estas eram ou usadas em cantochão (canto gregoriano) ou em “canto de órgão” (canto em vozes, silábico e homofônico). As ocasiões em que se fazia música nos estabelecimentos jesuíticos eram especialmente os ofícios de vésperas, as procissões e ladainhas, os funerais e as missas cantadas (em dias especiais do calendário litúrgico). Havia ainda muitas ocasiões profanas para o uso da música. Representações teatrais - como autos, diálogos, comédias e tragédias, cerimônias de formatura nos colégios (láureas), e também “recebimentos” cerimônias indígenas de saudação à chegada de visitantes – costume mantido pelos jesuítas.

No final do trabalho o autor faz uma comparação com as missões jesuítas espanholas no Paraguai, explicando porque a atividade musical ali foi muito maior na América Portuguesa. Não sei porque o autor não comentou também sobre as missões da região de Chiquitos, no chaco boliviano, onde houve também atividade musical muito intensa e documentos que sobreviveram até nossos dias. As razões fornecidas pelo autor são principalmente duas: o maior isolamento das missões espanholas e o maior número de músicos formados entre os padres que compuseram tais missões. No Paraguai, os jesuítas construíram os aldeamentos o mais longe possível dos colonos brancos. Isso foi feito para proteger os índios, mas permitiu também um maior desenvolvimento do trabalho de catequização e os correlatos trabalhos de educação e de música. No Brasil, por causa da proximidade com centro urbanos, os índios eram sempre requisitados a deixar os aldeamentos para executar serviços diversos.

Este isolamento das missões espanholas também favoreceu a sobrevivência dos documentos. Na América Portuguesa à expulsão dos jesuítas em 1759 seguiu-se a destruição de seus documentos. Somente sobreviveram os que tinham sido enviados à Europa. Já nas missões espanholas, a dificuldade de acesso fez com que as partituras ficassem na mão dos índios após a expulsão dos jesuítas espanhóis em 1767. Foi o fato de terem ficado em mãos indígenas que permitiu aos documentos sobreviverem até hoje.