sábado, 23 de fevereiro de 2008

Teresa

Revista de literatura brasileira do Departamento de Letras da USP, seu número 4/5, de 2003 (publicado pela Editora 34) é dedicado inteiramente ao tema Literatura e Canção. Um número clássico, com uma série de artigos imperdíveis, versando sobre essa que é a grande contribuição do Brasil ao mundo: a canção brasileira.

Sem respeitar a ordem das páginas, e propondo um roteiro de leitura, eu diria que a revista começa com um documento: a conferência de Caetano Veloso no MAM em 1993 (p. 307-339). O texto é uma reflexão sobre o tropicalismo e o papel do movimento para complexificar o debate cultural nos anos 1960, pois este debate, segundo Caetano, vinha sendo atrapalhado pelo simplismo do que ele chama “esquerda festiva”. Como sempre Caetano – texto polêmico, culto e esclarecedor. Importante de ser lido, apesar de um pouco datado (lida com a questão da posição subalterna do Brasil na nova era de hegemonia norte-americana e com o desmonte das políticas culturais existentes pelo governo Collor).

Seguindo um certo fio de lógica, pode-se ao texto de Ivã Carlos Lopes e Luis Tatit – Ordem e desordem em “Fora da ordem” (p. 86-107), pois analisa uma canção de Caetano Veloso que corresponde exatamente ao momento histórico da conferência proferida no MAM. Tatit é o autor de um método analítico conhecido como “semiótica da canção”, que vem ganhando reconhecimento por ser um método analítico oriundo dos campos da lingüística e da teoria literária que considera a canção como manifestação literária, mas incorpora o parâmetro sonoro das alturas como elemento de análise. Assim, a interessante análise da canção de Caetano serve para compreendê-la como peça lítero-musical, demonstrar a utilidade do método e também para demonstrar o completo absurdo de analisar uma canção como se ela não fosse música e sim apenas poesia.

O mesmo método é usado com propriedade em outros textos da revista. O interessante é que todos estes autores demonstram como se usa um método analítico. Não é uma fórmula para se obter respostas. Em outras palavras, não basta ter um método e depois ligar o “piloto automático”. Análise musical ou literária é erudição, é feeling, é relação entre diversos saberes, interlocução entre diversas culturas, diversos textos, diversos mundos. É por saber disso que Fernando Mesquita analisa tão bem a canção Cores vivas de Gilberto Gil (p.108 – 129). É por saber disso que Arthur Nestrovski consegue explicar tão bem Águas de março, de Tom Jobim, que ele apresenta como O samba mais bonito do mundo (p. 130-143) – sem usar o método de Tatit, mas mostrando que cada canção precisa que se forje para ela o método ideal específico. Nestrovski vai um passo além, pois relaciona poesia, melodia, harmonia, timbre e nuances de diferentes intérpretes para esclarecer a obra em questão.

Justamente o livro em que Tatit propõe seu método analítico (O cancionista. Composição de canções no Brasil. São Paulo: EDUSP, 1996.) é resenhado pelo pesquisador e professor britânico David Treece (p. 332-350). Com o olhar de estrangeiro, Treece é capaz de encontrar a grande contribuição de Tatit: muito além de um método analítico que aprofunda a compreensão do elemento canção, a abordagem semiótica de Tatit serviu também para permitir novos caminhos na compreensão da música brasileira. E a novidade destes caminhos, para Treece, está na possibilidade de se desvincular do projeto nacionalista como chave hermenêutica e valorativa da canção, que acabou por desembocar na criação do rótulo MPB e da sua valoração como música brasileira por excelência, apesar de representar apenas uma pequena parcela de apreciadores musicais de classe média intelectualizada, num país com predominância de ouvintes pobres e pouco escolarizados, cujo gosto musical vem sendo desprezado pelos que escrevem a história da música brasileira.

Aliás, a exaltação desta música das classes subalternas, que ficou esquecida a partir da Bossa Nova e não entrou na composição do campo da MPB – é o programa político subjacente a toda a obra do historiador José Ramos Tinhorão. Sua trilogia A música popular no romance brasileiro é resenhada por Roberto Alves (p. 351 – 357) que demonstra que o programa político de Tinhorão atrapalha sua compreensão das obras literárias pois Tinhorão não só espera, mas exige, que os romancistas deveriam ter pensado suas obras como documento histórico e, principalmente, documento histórico da cultura popular. Tentando buscar nos romances o que eles não são, nem devem ser, Tinhorão prejudica o excelente trabalho de pesquisa documental, que, mesmo assim, resta sendo uma leitura importante e esclarecedora – desde que o leitor tenha o devido cuidado.

Se Tinhorão busca a relação entre literatura e história, e entre literatura e música, outros autores também o fazem nesta revista. Afinal é uma revista de literatura, e a abordagem da canção aparece aqui a propósito de sua intersecção com a literatura. Por isso Renata Mancini analisa literariamente a canção Homenagem ao malandro de Chico Buarque e a contrapõe à técnica literária usada para construir o romance Estorvo (p. 144-165). A autora mostra a indeterminação como elemento constituinte em ambas as obras – o que é a grande malandragem de Chico Buarque como compositor e escritor. Outro romance de Chico Buarque (Budapeste) é resenhado por Zsoze Mikhail (p. 394 – 397).

A relação entre literatura e música continua a ser explorada nos texto de Ulisses Infante, que analisa a música popular brasileira vista pelos olhos do escritor modernista Murilo Miranda (p. 228-270). Infante demonstra como os escritores modernistas podem ser um grande filão para entender a constituição da música popular nacional. Bons exemplos do que Infante analisa estão aqui e aqui.

Maurício de Carvalho Teixeira mostra em O avesso do folclore (p. 271-282) como um dos grandes escritores brasileiros – Mário de Andrade, que tinha também um claro programa estético para construir uma música brasileira de concerto, dialogava com a nova música popular urbana que vinha surgindo gravada em fonogramas. Mário de Andrade pensava o fonograma como uma ferramenta de registro do material folclórico que deveria ser coletado/preservado/reelaborado pelos intelectuais. Mas não esperava nem desejava que ele tornasse o que se tornou – um veículo comercial e difusor de uma música com a qual o escritor não tinha traquejo para lidar.

Transformar literatura em canção também pode ser um exercício interessante, como fazem Cláudio Henrique Sales Andrade – ao analisar uma poesia de Patativa de Assaré em forma de desafio de cantadores (p. 181-214), Luis Roncari – comentando a importância central de uma canção ouvida por Riobaldo em Grande sertão veredas (p. 283-295), ou ainda Alcides Villaça, que encontra a música adormecida na poesia Canção dos sinos de Manuel Bandeira (p. 296-301)

A relação entre música e literatura também pode ser feita pelo viés da antropologia, como faz João Camillo Pena em sua resenha que contrapõe os dois estudos de Hermano Viana – sobre o funk e sobre o samba. O autor da resenha confronta uma visão excessivamente conciliadora em Viana, quando propõe o samba como encontro de diferentes grupos étnicos e sociais, e como paradigma da mestiçagem ao estilo do que propunha Gilberto Freire como a grande marca do Brasil. Pena acredita que os conflitos e violências embutidos no processo não precisam e não podem ser omitidos na questão.

Walter Garcia, que já ficou conhecido por um livro que escreveu sobre João Gilberto, também faz uma abordagem antropológica do Racinonais MC’s, fazendo um convite ao conhecimento da obra cancional/literária deste grupo de rap paulista.

O número da revista é enriquecido por outros textos poéticos de Alice Ruiz (p. 80-84), Antonio Cícero (p. 302-303) e Carlos Rennó (p. 409-411), todos de alguma forma relacionados à canção. Outras resenhas incluídas no volume são a de A era dos festivais de Zuza Homem de Melo, por Joaquim Alves Aguiar (p. 382-386), a de Tropicalista lenta luta de Tom Zé, feita por Daniel Sampaio Augusto (p. 387-393) e a de Eu não sou cachorro não de Paulo César de Araújo, feita por Marcos Napolitano (p. 378-381). Há ainda um apêndice sobre os acervos e a preservação da música popular, escrito por José Geraldo Vinci de Moraes (p. 400-406). E finalmente o começo: o ponto alto da revista é o texto de José Miguel Wisnik sobre o conto Um homem célebre, de Machado de Assis.